Encontramos, nos anos 60, uma prática cultural jovem, engajada no mito revolucionário das transformações sociais e impulsionada pela ideologia de uma cultura nacional e popular, cujos emblemas mais tocantes são o teatro de protesto, cinema novo, uma estética do realismo social.
Depois, nos anos 70, podemos observar a estratégia de uma produção cultural alternativa, que se expressa através do jornalismo, da literatura, uma estética da contracultura resistindo à institucionalização da cultura promovida pelo Estado, sob os auspícios do regime militar. Neste período, temos a expansão dos meios de comunicação e da cultura de massa.
No que concerne aos anos 80/90, percebemos a disseminação de uma recusa geral das estratégias ético-políticas dos anos precedentes, assim como o deslocamento das noções e conceitos que, no Brasil, foram utilizadas para compreender as particularidades da cultura e da sociedade.
A interpretação das relações entre cultura e sociedade, no Brasil, nos anos 60, buscou explicar o que pareciam ser os problemas fundamentais do país, a saber, as formas de exercício do poder econômico, político e cultural pelo "imperialismo norte-americano" e, as formas de controle e dominação internas pelo Estado e pelas "classes dominantes". Os sujeitos destes agenciamentos não puderam fazer a sua auto-crítica e reavaliação, uma vez que a censura sobre a produção cultural lhes interditou. Ao longo dos anos 70, as pesquisas são centralizadas através de uma linguagem indireta, mais formalizada, cuja orientação estruturalista se fez marcante. Podemos reconhecer que a leitura social do Brasil, naqueles anos, nortearam-se em torno dos grandes sistemas, suas noções, conceitos e dicotomias (ideologia, Estado, História, classes sociais...). De uma maneira diferente, percebe-se que as preocupações das gerações dos anos 80/90, dirigem-se a partir de outras orientações: a crítica social, informada pelos conceitos e noções, tais como consciência social, alienação, engajamento social da arte... parecem não se sustentar na dita "era da informação".
O desenvolvimento do país, os novos estilos das relações sociais (inclusive os modos de integração e exclusão), a globalização e nova desordem das tribos urbanas conduziram as interpretações da sociedade e da cultura rumo à outras perspectivas, entre as quais, um olhar mais detido sobre o imaginário coletivo, como uma maneira de compreender as imagens, mitos e símbolos que reafirmam os laços entre os atores sociais. Nos anos 80/90, as pesquisas sobre a mídia, o jornalismo, a publicidade, a ficção das telenovelas, os shopping centers e as novas tecnologias, por exemplo, tornaram-se os objetos de interesse para vários pesquisadores, que desejam propor um novo enfoque sobre as culturas do cotidiano.
Desde os estudos sobre o Brasil colonial até as obras mais recentes, encontramos várias maneiras de estimular um debate. O país dos trópicos, das mestiçagens, da luta de classes, da carnavalização, dos paradoxos da modernização, "o Brasil real e simulado" é um conjunto de imagens construídas pelos intérpretes que tentam estabelecer uma leitura transparente da cultura. A mistura étnica, que provém do encontro entre índios, africanos e povos europeus, é com efeito o que estrutura a forma das artes, da cozinha, do ritmo, dos afetos e do emocional coletivo, uma realidade multiforme que torna difícil a apreensão de uma única identidade brasileira. Negro, branco, índio e mestiço, rico e pobre, machista e patriarcal, católico e pagão, simples e complexo... são diversas as fontes de identificação deste país, cujo povo não perde o entusiasmo, apesar de todas as adversidades. O Brasil chega às vésperas do século XXI, deslocando-se entre as economias mais desenvolvidas do planeta, produzindo tecnologias de ponta, uma das televisões mais ousadas do mundo, uma criação artística muito rica e, em contrapartida, muitas contradições.
Os anos 60/70 nos parecem referenciais de uma experiência que abriu o campo para uma reflexão sobre as condições de emancipação da sociedade e da cultura; esta experiência pode ser compreendida se levarmos em conta as condições sociais que a tornaram possível e o espírito do tempo que a engendrou. Poderíamos dizer que o engajamento social e a militância política, o discurso de protesto e a guerrilha urbana forjaram o lado prometêico do Brasil nos anos 60/70, enquanto que a música, as mensagens do amor livre e o retorno à natureza traduziram a emergência das pulsões dionisíacas. A geração jovem daqueles anos realizou a experiência de uma estética rebelde, através da qual podemos perceber uma ética que revigorou a sociedade fatigada dos seus valores anacrônicos. Não podemos compreender o Brasil dos anos 70, desconhecendo que as atividades lúdicas, o culto do prazer criaram a estética tropicalista, uma estratégia inteligente e atenta às raízes do Brasil, mas também com as antenas ligadas à atualidade.
O psicodelismo, a irreverência, o misticismo, a vida em comunidade foram os fundamentos dos discursos rebeldes que se opuseram aos discursos autoritários, assim como uma passagem para outra forma de sociabilidade. A explosão do rock, a universalidade juvenil da cultura pop, ao lado das expressões do tropicalismo (a versão brasileira da contracultura) foram uma espécie de cimento para esta experiência. "A inscrição da contracultura no Brasil se fez táctil, visual, musical e, sobretudo, estética: seu nome era tropicália ou tropicalismo. Seu fundamento estético se encontra na utilização e recuperação dos produtos da cultura de massa. O movimento se nutriu do deslocamento dos paradigmas racionais da crítica de arte. A estética do tropicalismo tentou absorver as contradições dos trópicos e mostrar seu verdadeiro rosto. O intuito era destruir os falsos mitos e profanar as relíquias que lhes eram associadas, através do procedimento de carnavalização, misturando o candoblé, o rock, o folclore da América Latina e as novas tecnologias. A tropicália soube, então, compor uma face multiforme que não aderia mais aos esquemas cristalizados da cultura. Propôs uma outra leitura do Brasil, que a percepção estética convencional julgava cafona, atrasada e de mau gosto". Misturou os signos da indústria cultural e os emblemas da tradição brasileira de uma maneira tão forte que deslocou o debate nacional do plano político ao plano de uma estética (literatura, música, cinema) transcendental. Hoje, as imagens dos anos 60/70, em sua versão prometêica e suas promessas de felicidade escondida no futuro, fazem parte do museu imaginário, dos inventários e visitações históricas. Por outro lado, uma vez que foram aquecidas pelo fogo da transformação da música, das paixões coletivas e da natureza, aqueles anos, em sua versão dionisíaca, revelaram os signos que encontram ainda hoje a sua recepção no imaginário social.
Desde os modernistas (da Semana de Arte Moderna, 1922) passando pelos concretistas, os tropicalistas e o universo barroco na ficção das telenovelas, temos um percurso curioso: a inversão dos valores, a mistura dos estilos da linguagem oral e escrita, a preocupação com a visualidade são instâncias permanentes na história da cultura brasileira, as quais definem o fenômeno conhecido por carnavalização. Esta atitude estética encontra as suas raízes na tradição popular, na excitação do mundo de ponta à cabeça no mês de fevereiro, na apreensão dos modelos estrangeiros e sua adaptação à moda da casa, assim como na atualização do arcaico no curso das práticas cotidianas, encontramos este recurso que faz parte do repertório do país.
A diversidade faz a dinâmica dos traços barrocos da cultura brasileira, na qual as razões e paixões do cotidiano nacional foram sempre projetadas nos domínios do saber, da arte, das religiões e da política. Desde o século XVI, de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, até às alegorias carnavalescas de Joãozinho Trinta e à poética das canções de Caetano Veloso, Titãs e experiências musicais Mangue Beat reencontramos a irrupção desta sensibilidade.
As tecnologias audiovisuais no Brasil, notadamente no campo da produção ficcional, potencialmente têm os meios de redimensionar esta experiência estética, permitindo uma tradução multiforme da realidade. Partimos do pressuposto que a mídia, insere-se num contexto social de significação ambígua. De um lado, a mídia se apresenta como um fenômeno que possui imagem análoga ao personagem mítico de D.Juan (na medida que é vetor de sedução das massas), mas por outro lado, identifica-se com a imagem estereotipada de Pavlov (e a teoria do reflexo condicionado). Entretanto, no que respeita ao pólo da recepção, além das imagens de D. Juan ou de Pavlov, podemos perceber que a mídia sofre também a ação exercida pelo público. O feed back pode ser apenas um dispositivo de audiência, mas pode ser visto também como um indício do que se passa no campo de recepção das massas. Mesmo que a televisão difunda as imagens do real de maneira maquiada, no contexto de complexidade da cultura brasileira, a mídia é um vetor de oxigenação. No que respeita aos negócios da comunicação, no momento nos interessamos por uma reflexão que interroga sobre como estabelecer os termos de uma compreensão que pudesse equilibrar as instâncias da indústria das imagens da mídia, do imaginário coletivo e da imaginação criadora.
As gerações informadas pela comunicação tradicional têm uma compreensão específica do real, que se distingue daquelas informadas pela comunicação audiovisual. No que concerne à geração do multimídia, da Internet ou da realidade virtual, é preciso admitir que nos encontramos face a um fenômeno sociocultural novo, diante do qual não podemos utilizar as mesmas medidas, tomadas como referência para entender o trabalho de criação das gerações precedentes.
A cidade das letras, habitada pelo homem tipográfico, informado pela linguagem verbal, interage com a cidade das imagens, habitada pelo homem midiático, o qual é sensibilizado pelas novas tecnologias da imagem e da comunicação. É um fenômeno geral que se inscreve na realidade sociocultural e faz parte, doravante, do conjunto das questões éticas e estéticas da sociedade contemporânea: tal fenômeno solicita uma investigação mais cuidadosa, atenta ao mínimo-múltiplo-comum da cultura do atual e cotidiano.
As novas tecnologias da informação e da comunicação (inclusive a produção de livros, discos, filmes, cassetes, CDs...) difundem uma estética que toca a sensibilidade das camadas sociais e se torna virtualmente um vetor de conhecimento. A comunicação intermidiática nos estimula a repensar a formação do imaginário social numa outra perspectiva, absolutamente diferente daquela que põe em evidência a comunicação verbal.
No contexto da cultura midiática podemos encontrar algo que se conhece na teoria da literatura por intertextualidade ou interdiscursividade, isto é, uma proposta de comunicação que abre caminho para o diálogo entre diferentes gêneros discursivos, logo, um novo espaço para a produção de sentido. As imagens que compõem os textos de escritores como Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Jorge Amado, por exemplo, chegam às novas gerações através de múltiplos códigos de linguagem. As obras dos autores brasileiros de vulto são captadas pela sensibilidade do público comum por intermédio da mídia eletrônica, que pode ser bem criativa.
O diálogo simultâneo entre os códigos de linguagem do teatro, do cinema, da literatura e do vídeo abrem as portas para a descoberta de novas visões e experiências do mundo. Assim, uma geração que começou a tomar contato com a arte pela televisão, chega a descobrir obras importantes como Dona Flôr e seus Dois Maridos, Grande Sertão, Veredas ou Os Sertões. O fenômeno intermidiático, de contemplação das imagens do mundo, tem lugar através de múltiplas janelas de maneira simultânea. Do livro à tela, dali ao vídeo, o retorno ao livro e vive-e-versa são vários os caminhos possíveis, muito prazer para o público, escolhas e utilizações importantes por parte do usuário que não se pode ignorar.
Além das ideologias e mitologias de cada época, as sensibilidades dispersas no tecido sociocultural se reconhecem nas imagens, signos e linguagens que constituem as formas específicas da sociabilidade. Atualmente, uma tal comunhão se faz pela comunicação e cultura midiática.
Os resíduos da cultura regional, da cultura nacional-popular e da contracultura tornaram-se a substância da cultura de-massas do século XX. As sombras da vanguarda, recicladas com as sobras da retaguarda, são doravante um produto de marketing, produto de comunicação, e em breve serão imagens virtuais da cibercultura. A música urbana, as teledifusões piratas, os videoclipes e as telenovelas são referências para compreender esta cultura em agitação, em pedaços, que revela aspectos da realidade brasileira do atual e cotidiano. As novas gerações dos anos 80/90 descobriram o mercado cultural como canal de divulgação da sua produção. Elas utilizam um código, marcado pela pluralidade, que invade as redes de comunicação em conexão simultânea com diferentes gêneros de linguagem; assim se aproximam da idéia de obra de arte total.
Nas ondas do rádio explodem o som e a fúria da música urbana (rock, reggae, rap, new age, afro-musique...) o hibridismo dos estilos impõe uma nova dimensão ao ritmo brasileiro, que não se reduz ao samba e à bossa nova. As revistas, os livros de bolso, as histórias em quadrinhos, o grafismo dos jornais traduzem -ao mesmo tempo- a reciprocidade entre a nova produção editorial e os novos estilos de linguagem, as novas formas de comunicação e de sociabilidade na paisagem sociocultural. As rádios e tevês piratas que bem humoradas, tentaram quebrar o monopólio das telecomunicações, tornaram-se também expressão do estouro da cultura, dentro e fora da globalização cultural. Como o rock, em todas as suas variações (inclusive o mangue beat e as novas versões do pop), não são vetores da cultura popular (no sentido convencional), não são também dispositivos da cultura erudita e nem são mais expressões da contracultura. São paradigmas de fenômenos que projetam as formas de transfiguração do político, da ética e estética, e expressam os novos modos de tribalização do mundo.
Na aparente dispersão dos estilos e linguagens que animam a comunicação cotidiana, encontramos uma via para a compreensão do imaginário social.
Além dos clichês, das ideologias e dos slogans publicitários do país do carnaval e do futebol, existe qualquer coisa de vivo e pulsante na história recente da cultura brasileira, onde os atores sociais não perdem a esperança e o humor. Multiplicando todos os jogos de linguagem do mercado, do Estado, das instituições, da mídia e dos seus simulacros, ultrapassam, no cotidiano das cidades, as fronteiras entre o regional e o universal, fazem a festa e ritualizam a mitologia dos carnavais, malandros e heróis. A mídia não cessa de tentar lhes seduzir; os números e as estatísticas os atravessam sem lhes tocar, os conceitos monológicos de cultura regional, nacional, popular ou de massa, apenas lhes fazem rir. Uma leitura dogmática da sua realidade social é derrisória, no que concerne à potência dionisíaca das "maiorias ruidosas". As lutas de classes, de corpos e anti-corpos, a guerra das cores na publicidade, no futebol e no carnaval de todas as religiões são elementos dinâmicos no imaginário brasileiro que resta ainda por se traduzir, dentro e fora do vídeo. Lembremos ainda que o signo mais marcante desta realidade social parece ser de assimilar e depois quebrar todos os discursos de certeza e de totalização científica, institucional ou midiática. Entre a força do dionisismo brasileiro e a compreensão das formas do seu imaginário social, qual é o parâmetro epistemológico a seguir? Entre a razão prática e uma escolha antropológica atenta à comunicação social, parece-nos que, a despeito das ilusões que ela veicula, a construção midiática da realidade brasileira é também uma maneira de se aproximar do corpus e anti-corpos do imaginário coletivo.
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